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  • Gustavo Sette

Reflexões sobre a difícil tarefa de um pai demitir o filho

“Filho é indemissível”.

A frase do deputado Eduardo Bolsonaro na capa da revista Crusoé chama a atenção para um tema muito frequente em empresas familiares: é possível demitir um filho? Como tomar essa decisão? Como executar?

A conclusão das linhas abaixo é… Sim. É possível e muitas vezes necessário demitir um filho da função de empregado da empresa da família, mas o tema exige muita reflexão e muitos cuidados.

O filho pode ser demitido, mas jamais deixará de atuar no sistema que engloba a família e a empresa. Portanto, não se trata de um desligamento, mas sim de uma mudança de papéis dentro de um sistema, e a forma de se conduzir esse delicado movimento pode ter impactos muito maiores do que a decisão em si de demitir.

Minha argumentação neste artigo não se aplica para casos pontuais, em que um filho foi pego roubando, aos amassos com um colaborador dentro da empresa ou outros eventos graves de desvio de integridade, que merecem uma atuação imediata.

Outro disclaimer importante nesse mundo politicamente correto é que, para simplificar, usei os termos “pai”, para caracterizar o líder da geração que está no comando (que pode ser o pai, a mãe ou o casal) e “filho” para a pessoa da geração sucessora, que pode ser filho ou filha.

Filho ou não, toda demissão exige cuidados

Antes de falar sobre a demissão de um filho, falemos da demissão em si: é um processo delicado e com potencial para causar danos quase irreparáveis à carreira, vida pessoal e autoestima de uma pessoa.

Dois aspectos são cruciais: a decisão e o evento de demitir.

A demissão não deve ser uma surpresa a quem é demitido. Se a pessoa não está desempenhando bem, não tem alinhamento com a cultura ou demonstra outros problemas, deve receber feedbacks, ferramentas e precisa correr atrás. Se não reagir com o tempo, é hora de partir.

A reunião de demissão é outro capítulo relevante. Gosto de uma frase do filme “Amor sem Escalas”, de 2010, em que George Clooney é um executivo contratado para demitir pessoas. Em algum momento ele diz: “quem me contrata pode até não ter coragem para demitir, mas pelo menos tem coração e caráter para oferecer ao demitido uma reunião presencial e profissional”.

Em ótimas empresas que trabalhei, recebi treinamentos sobre como conduzir a demissão, com fundamentação teórica e simulações.

Já presenciei casos em que um gestor pediu a cabeça de um funcionário, e ouviu a seguinte resposta: “ele está há um ano sem entregar resultados, chega atrasado e não trabalha em equipe? Aplique uma nota baixa na avaliação de desempenho, dê um feedback rigoroso, faça um plano de mais 6 meses e, se ele não reagir, voltamos a conversar”.

Eu já participei do processo de demissão em todos os papéis, inclusive no de demitido, em que tive experiências marcantes, positivas e negativas.

Falar sobre demissão começa por aqui, por uma preocupação genuína com os impactos no indivíduo, e quem não concordar que é um processo que merece todo esse cuidado e carinho, é melhor nem continuar a leitura.

Quando “desligamento” é, na verdade, uma troca de papéis

Demissão é um tema tão espinhoso que tem vários sinônimos: um dos mais comuns, “desligamento”, é uma armadilha no caso de empresas familiares, pois jamais se desliga um parente.

Falando apenas da relação com a empresa, um filho é aquilo que se chama de “herdeiro necessário”, ou seja, tem direito a uma parte dos 50% da herança do testador (os outros 50%, quem faz o testamento destina a quem quiser).

Demitir um filho, portanto, equivale a demitir um futuro sócio, e isso não é segredo para ninguém. Os familiares e as pessoas que fazem parte da empresa sabem que os filhos um dia serão donos, e qualquer instabilidade perceptível nessa relação abala a todo o sistema.

Um filho demitido, portanto, não é desligado da empresa. O que acontece é uma mudança do seu papel – deixa de ser empregado, mas continua sendo familiar e herdeiro.

Esse novo papel, quando carregado de incertezas, pode impactar todo o sistema. Bons funcionários que olham para o futuro podem se desmotivar – se a liderança da empresa trata um filho assim, o que dirá dos reles mortais? A relação entre os irmãos pode se desestabilizar, tendo em vista que eles acabam sendo divididos – uns conversam sobre o futuro, outros não.

Há casos em que a empresa (ou a família) tenta montar uma megaestrutura de blindagem patrimonial para que, no futuro, o filho demitido não ameace a continuidade da empresa, mas essas construções dificilmente param em pé se não houver harmonia entre os envolvidos. O poder de questionamento dos herdeiros necessários é muito grande, e deixá-los no escuro é um caminho quase inevitável para um litígio danoso.

Veja o caso de Marcelo Odebrecht. Ele é filho, herdeiro e sócio, mas está sendo ignorado pelo pai. É uma posição que pode gerar uma série de reações, todas em direção a grandes conflitos. Já li de tudo sobre o caso, até mesmo que o filho estaria tentando uma aliança com executivos do grupo para uma volta. A família Lacoste também tem uma história semelhante. Não se deve, portanto, falar em “demissão do filho”, mas sim em uma transição de papéis.

Os motivos mais comuns

Comentei abaixo alguns motivos clássicos para uma demissão.

Não entrega de resultados – para ter certeza que estamos falando da mesma coisa e sendo justos, não bater metas é um problema quando o filho está em uma atividade que faz sentido dentro de suas formações, desejos e competências, trabalha com metas claras, mensuráveis e alcançáveis e, dentro desse cenário, não alcança as metas há algum tempo. Se for o caso, vale investir em capacitação, treinamento, mentoria, coaching, gestão mais diretiva, fatiar as metas em porções menores, tentar outras áreas, até ter a certeza de que não há outro caminho dentro da empresa.

Abuso do comportamento de “filho do dono” – chega atrasado, é grosseiro com as pessoas, atropela a hierarquia, paquera colegas de empresa, estaciona o carro de qualquer jeito. Muitos filhos fazem essas coisas e o pai não reage, sendo que alguns até parecem achar bonito. Esse é um dos motivos pelos quais um filho só deve entrar na empresa da família depois de ter criado uma carreira relevante em outras empresas. Aqui é preciso muita conversa e mentoria, mas em muitos casos, não há mesmo como continuar. O ideal é fazer o que deveria ter sido feito antes: trabalhar em outra empresa, para ver como é a vida.

Claramente não queria estar lá – o filho entrou na empresa da família por embalo e, com o passar do tempo, ficou claro que ali não é o seu lugar. Gosta de música e arte, mas a empresa presta serviços contábeis. O pior é que, em muitos casos, todos os funcionários percebem a inadequação, EXCETO o pai, e não se cria um ambiente seguro para uma conversa sobre o futuro.

O filho deixa de desempenhar o papel sonhado pelo pai – por incrível que pareça, esse é o caso mais comum: o pai tem um sonho para o futuro da empresa e da família e quer impô-lo. Quando alguém defende uma vontade diferente, o pai reage. Estudei um caso ocorrido na Inglaterra em que o pai sonhava em passar a empresa para o filho mais velho, que não tinha motivação nem competência para a posição. Quanto mais sinais surgiam de que o sonho era inviável, mais obstinado o pai ficava em tentar materializá-lo, chegando a demitir uma filha, um primo muito competente e alguns executivos. O grande desafio aqui é o pai entender que o futuro deve ser construído com uma visão dos sonhos de todas as pessoas envolvidas. O fato de ser dono da empresa não qualifica ninguém para ser dono e mandar no futuro dos outros.

A prevenção é sempre o melhor remédio

Entrando agora na empresa familiar, talvez a frase que eu mais fale aos meus clientes é: “planeje como agir em situações difíceis antes que elas aconteçam”.

O problema é que muitas famílias empresárias não planejam nem a entrada, nem a saída dos filhos.

Idealmente, um filho só deveria trabalhar para a sua família após ter construído uma carreira relevante fora, em outras empresas. Já trabalhou com chefes, culturas e pares diferentes e conseguiu evoluir. Entrar na empresa da família deve ser uma escolha entre outras possíveis e, caso não dê certo e seja necessário voltar ao mercado, já há um currículo, uma rede de contatos e uma história a contar.

Infelizmente, não é o que sempre acontece. Há muitos casos em que o filho entra em um ato de empolgação impensada, do tipo “aí fora está difícil, vem para cá, no fundo a empresa é sua mesmo”.

A saída de um filho também deve ser planejada antes de acontecer. Critérios, regras de remuneração, indenização, participação societária, como será comunicado e outras.

A nova carreira do filho

Muitos filhos saem da empresa da família sem terem criado uma identidade profissional independente. Entraram cedo na empresa, foram sempre protegidos, desenvolveram um certo padrão de vida e, de repente, precisam recomeçar, mesmo sem ter renda e as competências necessárias.

Caso vá procurar emprego, o mercado tenderá a desconfiar e até precificar o risco de contratar um profissional maduro que só trabalhou com a própria família.

Uma análise fria e jurídica dirá que filho criado não é mais problema do pai, que a lei brasileira não distingue empregado da família ou não e que ninguém mandou o filho ter entrado na empresa quando era jovem. Ou, como alguns empresários já falaram de forma mais resumida, “não tenho obrigação nenhuma de sustentar marmanjo”.

Tudo isso é verdade, mas a consequência dessa interpretação gélida é: ou o filho fica infeliz e dependendo do pai por causa do dinheiro, não se desenvolve como líder e não se realiza, ou ele sai para dois possíveis caminhos: quebrar a cara e ter que voltar e beijar a mão do pai, ou dar certo de uma forma heroica, mas com abalos gigantes nas relações familiares… E uma total incerteza quando o tempo obrigar esse filho a voltar à empresa, como herdeiro.

Isso posto, retorno ao tópico anterior, da transição de papéis. O caminho ideal é pai e filho encontrarem, juntos, um caminho possível de realização profissional para o filho. Isso exigirá algum investimento de tempo e formação, e um pai capaz de abrir mão do controle sobre os filhos deve ajudar, fazendo um plano com começo, meio e fim, com metas e prazos, que permita ao filho superar esse difícil recomeço.

Vale aqui lembrar que muitas empresas contratam serviços de outplacement para facilitar a transição de carreira de executivos demitidos. É um investimento alto, muito justificado pela manutenção de uma boa imagem da empresa – “nós demitimos, mas ajudamos a pessoa a se recolocar”. Não me parece nenhum absurdo, portanto, que a empresa familiar, seja no CPF do pai ou no CNPJ da empresa, invista para que o filho se reposicione em uma nova carreira.

Um modelo para lidar com a situação

Chegamos ao ponto em que o pai concluiu que não quer mais o filho trabalhando na empresa. O que fazer?

Acompanhei um projeto bem-sucedido nesse tema que passou por 3 etapas. Não me arrisco a colocá-las como um mapa que funcionará em qualquer situação, mas serve como um exemplo de caminho a seguir:

Concluir em conjunto que era melhor o filho sair da empresa.

Há uma cláusula pétrea no universo das demissões que diz: “demissão não é momento para feedback”. Pura verdade. Toda a conversa deve ser focada no futuro. O momento aqui é de pai e filho articularem as suas visões de futuro. O que sonham e desejam como indivíduos, como família e para a empresa, até enxergarem que, para o alcance dessa visão, é melhor que o filho não trabalhe no negócio.

Definição do novo papel do filho dentro do sistema

Todo mundo fica de olho nas cadeiras de executivo da empresa, mas uma família empresária pode ter dezenas de diferentes papéis para os herdeiros: executivo, sócio, conselheiro, consultor, garoto-propaganda, atuar na governança da família, em filantropia, cuidar de algo do patrimônio, tocar algo próprio com investimento da família… Ou, nada de negócios! Ser um filho, amado e querido como todos, que participa dos eventos da família e receberá sua parte da herança, seja em forma de adiantamento, dividendos, propriedades, mesada, o que for. Não importa o papel, o que importa é que seja discutido e fique claro.

Desenho da nova carreira do filho demitido

Se o filho vai procurar outro emprego, abrir um negócio do zero, investir em uma franquia, fazer um curso, tirar um ano sabático ou ficar sem fazer nada, essa nova vida exige planejamento. Aqui, sai o papel de chefe e entra o pai, para mentorar e ajudar um filho que, na real, acabou de ser demitido. É preciso só evitar o risco de repetir a história, e o filho entrar em um projeto em que terá a mesma dependência do pai. Não adianta o filho sair de uma rede de escolas de Inglês, controlada pela família, para montar uma escola de Espanhol, com o pai como sócio investidor… E, no limite, chefe.

Trabalho para especialistas

Esse é o tipo de tema em que há um enorme benefício em trazer uma pessoa isenta e preparada para ajudar. Empresários geralmente não têm com quem conversar sobre essas temas e dificilmente reúnem as competências necessárias para atuar diante de situações dessa complexidade. Até me arrisco a dizer que são competências incompatíveis com aquelas que o fizeram a criar e levantar um negócio.

Ouvir o conselho do contador, advogado, executivo, amigo da família, psicólogo ou algum familiar pode trazer apenas uma parte da situação, enviesando a solução com um peso desproporcional a uma variável. O que diz a lei, ou o que é melhor para o caixa da empresa, ou o que o coração manda. É preciso equilibrar um pouco todas essas variáveis.

Há alguns anos, ajudo empresas familiares pequenas e médias a prevenir ou remediar situações como essa, sempre com o foco de manter a harmonia e a riqueza dentro da família. Cada família empresária é única em sua complexidade e desafios. Tem sido rico e apaixonante ajudar e conhecer tantas histórias e caminhos.

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