top of page
  • Gustavo Sette

Guia do planejamento sucessório (III): a sucessão é guiada e energizada pela visão de futuro



No artigo anterior, falamos sobre a sucessão na empresa familiar. Trouxemos dados sobre sucessões, entre eles o alarmante fato de que 70% das empresas não sobrevivem à passagem de geração.

Falamos o que é uma sucessão vencedora, quais elementos em comum entre casos de sucesso e fracasso e a grande importância da cabeça do fundador, entendendo que planejar a sucessão é uma de suas maiores responsabilidades. Vimos também que um bom planejamento sucessório deve envolver todos os familiares impactados diretamente, mesmo que isso torne o processo mais demorado e complexo.

A essa altura, você já deve ter entendido que sucessão é uma etapa inevitável a qualquer empresa familiar, afinal, o motor que conduz a família rumo à mudança é imparável: o tempo. Ninguém escolhe se vai passar por uma sucessão, o que se pode escolher é planejá-la ou não.

Superadas as etapas de consciência e convencimento de que planejar a sucessão é vital, vem a seguir a inevitável série de perguntas: como fazer? Por onde começar? Quando fazer? O que deve ser pensado?

A sucessão tem um destino

Parece tentador começar a discutir a sucessão pelas questões mais difíceis e materiais: quem será o novo CEO? Como o patrimônio será dividido? Como será a política de dividendos?

A experiência de 50 anos de uma série de especialistas em sucessão nos traz um ensinamento claro: é fundamental começar um planejamento sucessório de trás para frente, com os temas que reforçam a identidade da família, seus valores e objetivos em comum.

A sucessão não é só um evento, mas toda uma jornada que é guiada pela visão de futuro da família, suas aspirações e os desejos atuais e futuros, além de ter que valorizar o legado das gerações anteriores.

O trabalho de planejamento sucessório, portanto, começa por um processo inicialmente individual, de elaborar uma visão de futuro pessoal, e depois coletivo, de juntar essas visões e procurar uma visão compartilhada, capaz de transformar-se em um projeto que mantém o capital e a harmonia com a família.


Discutir sucessão ou mesmo planejamento estratégico, sem antes colocar os envolvidos pensando no que querem para o futuro, é o caminho para um planejamento fraco, muito mais complexo e que, provavelmente, não será implementado.

Visão de futuro: tema relevante em várias disciplinas

Visão de futuro, sonho compartilhado, sentido da vida, propósito… Existem vários nomes em diferentes teorias na história, na psicologia, antropologia, administração e em outras ciências.

Pegue o famoso encontro entre Alice e o Gato de Cheshire no genial “Alice no País das Maravilhas”, lançado em 1865 por Lewis Carroll. Perguntado sobre qual caminho deveria ser seguido, o gato traz uma resposta genial:

A resposta do Gato de Cheshire é uma variação de uma frase ainda mais antiga. Sêneca, intelectual romano de 2000 anos atrás, já falava sobre o tema com a frase: “não há ventos favoráveis para quem não sabe onde quer chegar”.

No aclamado e genial livro “Sapiens”, de 2017, o israelense Yuval Noah Harari traz uma reveladora teoria sobre a raça humana. Há 70 mil anos, nossos ancestrais eram animais absolutamente insignificantes, fracos fisicamente, e hoje dominamos a vida no planeta. Boa parte dessa diferenciação veio pela capacidade única do homem em trabalhar em grupo e sonhar, criar e acreditar em histórias, lendas e visões de futuro. O Sapiens foi capaz de sonhar com o futuro e colocar toda a sua energia e capacidade nessa busca.


Outro exemplo da incalculável capacidade da visão de futuro está no livro “Em busca do sentido”, do psiquiatra austríaco Viktor Frankl (1905 – 1997). Judeu, ele passou vários anos preso em Auschwitz e em outros campos de concentração, em condições inimagináveis de humilhação, tortura, fome e sofrimento. Em alguns momentos, a maior felicidade da vida era quando a colherada da água suja que chamavam de sopa – e única refeição do dia – trazia uma ou duas ervilhas do fundo da panela. Nesse ambiente, em que 90% dos presos morreram, Frankl afirma que o que o manteve vivo foi a visão de futuro. O combustível para aguentar aquela rotina era imaginar uma cena no futuro, que ele descreve detalhadamente – e que se materializou.

Trazendo a importância de uma visão de futuro para o mundo dos negócios, temos obras incríveis, como “A Quinta Disciplina”, de Peter Senge (1990). As 5 disciplinas de Senge são fundamentais para os processos de sucessão: domínio pessoal, modelos mentais, visão compartilhada de um objetivo em comum, aprendizado em grupo e visão sistêmica. Sobre visão de futuro, Senge diz: “A visão compartilhada é o que une os grupos na ação, e só é verdadeiramente compartilhada quando se relaciona com as visões pessoas dos membros do grupo”.

Autores mais recentes têm falado, na realidade corporativa, da importância e do poder de se trabalhar os indivíduos em busca de um sentido. Daniel Pink, no livro “Drive”, de 2011, e Simon Sinek, com “Start With Why”, também de 2011, trouxeram boas contribuições, mas meu autor favorito entre os contemporâneos é Fred Kofman, que lançou ano passado o ótimo “The Meaning Revolution”. O livro, cheio de conceitos valiosos, tem um trecho ideal para fundadores: um capítulo todo dedicado à mortalidade no trabalho. Segue um trecho:

“Quem funda e lidera uma empresa quer ser lembrado pelo que fez, quer alcançar certa notoriedade que perdure para além de sua vida. A solução é criar projetos de imortalidade, oferecendo aos seus seguidores, em troca de seu comprometimento apaixonado à visão de futuro, a chance de trabalhar com propósito em uma comunidade de sucesso”.

Vimos até aqui que uma visão compartilhada e clara sobre aonde se quer chegar é um tema conhecidamente poderoso, seja para filósofos da antiguidade, sobreviventes do Holocausto, historiadores, psicólogos e administradores de empresas. A próxima pergunta, de difícil resposta, é: como trabalhar e construir visões de futuro?

Combatendo o “presentismo”

O processo de construção de uma visão de futuro é complexo e leva tempo. As pessoas, de forma geral, têm uma enorme dificuldade em projetar cenários futuros, sem se prender aos modelos, obstáculos e limitações do presente.

Quem explica bem esse viés é o psicólogo Daniel Gilbert, de Harvard. Em seu ótimo livro “Stumbling on Happiness”, de 2007, Gilbert fala em “presentismo” e “racionalidade” para descrever nossa dificuldade em imaginar o futuro. Segue um trecho interessante:

“Se o passado é uma parede com buracos, o futuro é um buraco sem paredes. A memória usa a função do truque do preenchimento, mas a imaginação é esse truque, e se o presente dá apenas um pouco de cor ao nosso passado, aquilo que imaginamos sobre o futuro é totalmente impregnado por ele”.

A construção de uma visão de futuro, portanto, é um processo de alguns meses, que mistura reflexão individual com conversas em grupo, e a busca não é por um alinhamento perfeito entre os planetas, mas sim por um caminho possível, uma intersecção capaz de unir a família.

No nosso trabalho com famílias, começamos sempre com um workshop de abertura, que tem como objetivo colocar todos no mesmo contexto, explicar o tipo de projeto e que questões estão em jogo. Em seguida, fazemos trabalhos individuais, usando questionários e entrevistas para mapear uma visão para cada pessoa, pensando em suas aspirações para a família, a empresa, a própria carreira, uso de capital, filantropia e outros. O produto final geralmente é um texto de 2 a 5 páginas de cada indivíduo, e apenas uma parte desse material será compartilhada com a família.

Outras complexidades envolvidas

Pensar no futuro é algo complexo por uma série de motivos. Além do presentismo, já explicado acima, há também a dura tarefa de encarar a velhice e a mortalidade, que nunca são pensamentos charmosos.

Outras complexidades que precisam ser vencidas podem ser exemplificadas por algumas frases:

• “Não posso ter o que eu quero”. • “Eu quero algo que outra pessoa também quer”. • “Eu tenho medo do que eu quero”. • “Eu tenho vergonha de expor o que eu quero”. • “Ninguém está nem aí para o que eu quero”. • “Eu já sei o que eu quero”. • “Eu não consigo saber o que eu quero”.

É uma atividade complexa, mas o fato de ser difícil não é motivo para deixar de fazer, pois os resultados são extremamente gratificantes – para as pessoas e para o processo de planejamento.

Estudo de caso – Família “Bologna”

Para entender, ainda que de forma superficial, como é um exercício de visão de futuro, usarei um estudo de caso que costumo trabalhar em cursos.

Não deixa de ser uma ousadia, afinal, diversos autores consagrados, que vendem milhares de livros em diferentes línguas, não se atreveram a tentar resumir, em poucas palavras, um trabalho tão complexo. Vou me arriscar, já pedindo um desconto pela necessária simplificação e me colocando à disposição para tirar dúvidas e aprofundar melhor o tema em uma conversa, que é um canal mais adequado.

Esse estudo de caso é baseado em um caso verídico, mas com algumas mudanças. As fotos e o nome da família são fictícios.

Família Bologna

O pai, um imigrante italiano, construiu uma empresa importante e lucrativa, mas por questões de saúde e desejo pessoal, quer passar a última fase de sua vida na Itália, desde que não perca a harmonia e o contato com os filhos (e futuros netos).

Os 3 filhos trabalham no negócio, e fazem um esforço muito grande para manter a consonância – as diferenças entre eles são grandes e o filho 3 claramente não está feliz. O tempo está passando e todos esperam algumas respostas sobre o futuro.


Visões de futuro

Após uma primeira rodada, chegamos a uma visão de futuro de cada um, que em uma super simplificação pode ser resumida assim:

• Sonho do pai: manter a empresa com a família. Ter uma gestão compartilhada entre Filho 1 e Filha 2, tendo o Filho 3 como um subordinado dos irmãos. Quer morar na Itália e estar sempre com os filhos. Está feliz com o patrimônio que conquistou e prefere não correr muitos riscos para aumentá-lo. • Sonho da mãe: embora sonhe com todos trabalhando juntos, sabe que não daria certo, pois o Filho 1 é muito agressivo e muito mais preparado que os outros. Gostaria que o Filho 1 virasse o presidente, mas que cuidasse dos irmãos. Quer estar com os filhos e manter as atividades de filantropia da empresa. • Sonho do filho 1: dirigir a empresa, ganhar prêmios, sair na capa da Exame, ser motivo de orgulho para a família e para a cidade. Claramente, não quer trabalhar com os irmãos, pois sabe que arriscaria a harmonia e acha que a família vem em primeiro lugar. Quer ver os irmãos bem e acha que o dinheiro da empresa deve ser dividido, desde que os irmãos não tenham que trabalhar juntos. • Sonho da filha 2: carreira executiva, mas sem se matar de trabalhar. Ajudar a comunidade. Até trabalharia com o Filho 1, mas tem muito medo. Sente desejo de cuidar da família. • Sonho do filho 3: estudar música, tocar em uma banda, não trabalhar no negócio, mas ser remunerado, e ser aceito pela família assim mesmo.


Buscando o “terreno comum”

A família Bologna discorda e tem sonhos conflitantes em uma série de temas. Quando falamos sobre disposição para trabalhar, temos um filho que quer trabalhar muito, uma filha que quer trabalhar de forma equilibrada e um filho que não quer trabalhar.

Outro ponto de discórdia é sobre o formato de poder na próxima geração. O pai quer os filhos trabalhando juntos, a mãe acha que não vai dar certo e os filhos não querem.

Antes de enfrentar essas decisões difíceis, vamos em busca do que os une. Todos concordam ou, pelos menos, aceitam as seguintes visões:

• Orgulho pelo que a empresa significa na comunidade local.

• Desejo de manter a empresa com a família, mas a harmonia familiar vem primeiro (é melhor vender a empresa do que arriscar a família).

• Conservadorismo financeiro e estratégico. A família tem um bom patrimônio, uma empresa bem posicionada e terá que financiar alguns parentes que não trabalharão. Preferem, portanto, crescer e investir de forma cautelosa, com foco na segurança.

• Valorizam a união familiar. Irmãos não querem trabalhar juntos e isso deve ser respeitado.

• Pai precisa se afastar e não querem obrigar a mãe a ser empresária.

• Aceitação dos valores do filho 3. • Convivência precisa virar um hábito formal – é preciso ter rituais e obrigações para manter a família unida.

Todos esses desejos foram sintetizados em um parágrafo.


Visão de futuro da família Bologna
Dar continuidade à história da empresa, crescer de maneira conservadora e orgânica (em torno de inflação + 5% ao ano), apoiar e ser admirado pela comunidade local, financiar os estilos de vida que cada um escolheu, respeitando as diferenças entre as pessoas e priorizando a união da família. Garantir saúde, moradia e educação de qualidade para os próximos herdeiros. Encontros familiares periódicos no Brasil e na Itália.

Com essa visão de futuro e com os valores da família, tema sobre o qual escreveremos um artigo específico, é possível guiar praticamente todas as decisões relativas à sucessão.



Próximo capítulo


Após definir a visão de futuro, a família terá melhores condições para passar por uma questão muito importante: é possível e desejável manter a empresa sob o comando da família, ou é melhor avaliar a possibilidade de vender a empresa?


Defenderemos também a tese de que deixar uma empresa preparada para ser vendida é muito diferente da decisão de vender, e traz uma série de vantagens.

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page